Neoliberalismo, a rota do suicídio.
Arnaldo Mourthé
Em 1947 o teórico Friedrich Hayek reuniu os mais notáveis inimigos do New Deal e do Estado de bem-estar social, na pequena e aprazível localidade de Mont Pèlerin, à margem norte do lago Leman, na Suíça. Ali se formou uma sociedade ideológica para trabalhar pelos ideais do liberalismo, fundamentado sobre a mais absoluta liberdade do uso e da circulação do capital, em detrimento da liberdade do homem e de seus direitos duramente conquistados ao longo dos milênios (124). A cada dois anos os membros dessa sociedade reuniam-se para analisar a conjuntura mundial e formular sua teoria do deus-moeda, que a partir de 1990 ficou conhecida como pensamento único.
Até 1973, quando ocorreu a guerra do Yom Kippur, a sociedade de Mont Pèlerin apenas conspirava contra o avanço do humanismo, como uma dedicada irmandade de inconformados contra as conquistas sociais dos trabalhadores. Naquele momento eles ganharam uma notoriedade inesperada. A Opep aumentou o preço do barril de petróleo de 2,90 para 11,65 dólares, ou quatro vezes (121). O impacto sobre a economia mundial foi brutal, agora chamado de crise de 1974/75. As empresas acostumadas à energia farta e barata tiveram que rever seus parâmetros operacionais. Foram estabelecidos novos conceitos de planejamento e organização empresarial, com uma visão estratégica de um mundo em mutação, à semelhança do planejamento militar, descrito por Karl von Clausewitz em seu livro Da guerra. Foram adotadas novas tecnologias mais adequadas aos novos tempos, reduzindo-se o consumo de combustíveis. As descobertas científicas e inventos engavetados, à espera do desgaste das plantas industriais em operação, vieram à tona. Foi uma revolução nos campos dos novos materiais, da informática e das comunicações.
Nesse quadro, a sociedade de Mont Pèlerin introduziu suas teses, de forma meticulosa, nas instituições financeiras e grandes corporações, nos organismos internacionais, nas universidades e centros de pesquisa, em especial na pós-graduação de economistas, e na grande mídia. A partir daí, passaram aos governos da Inglaterra, de Thatcher, e dos EUA, de Reagan. Em cada uma dessas instituições, seu ultraliberalismo foi inoculado, para desenvolver o modus faciendi e as tecnologias necessárias para implantar a nova doutrina da supremacia do dinheiro sobre tudo o mais, inclusive sobre a ética e os valores morais e religiosos, em especial sobre o trabalho e a dignidade do trabalhador. Em outras palavras, a sociedade de Mont Pèlerin reciclou a ideologia liberal, retornando à sua origem, à liberdade irresponsável do capitalista, inspirada em Mandeville e sugerida por Adam Smith, em detrimento de tudo o mais.
No interesse dos grandes capitalistas, o pensamento único foi inoculado também nos governos dos países menos capitalizados, por eles apelidados de em desenvolvimento, como se o capital fosse o único parâmetro de avaliação dos povos; ou de emergentes, como se esses países emergissem do submundo. Para essa inoculação usaram a corrupção, as influências políticas e culturais dos países mais capitalizados e a força de suas armas. A coação e a corrupção foram os meios para o convencimento da “necessidade” de reformas nas suas leis. Retiraram-se direitos dos trabalhadores e cidadãos em geral, reduziu-se o aparelho de Estado, abriram-se as fronteiras ao capital estrangeiro e a suas mercadorias, e foi manietado o poder do Estado no controle da economia, em especial sobre as finanças privadas. Para isso era preciso grandes mudanças políticas. A propaganda insidiosa se encarregou de difundir seus sofismas para a população, num processo de alienação sem precedentes.
As ditaduras militares, tão úteis aos interesses do capital estrangeiro internado nos países periféricos, já não atendiam à liberdade do capital, seja pelo descrédito delas junto à população, seja por haver em muitos militares o sentimento de patriotismo e o respeito à soberania nacional. Era preciso substituí-las pela ditadura do capital financeiro. Instituiu-se uma democracia de fachada, que dá ao dinheiro a supremacia no processo eleitoral. A corrupção sistemática nos centros de poder garantiu a submissão de autoridades. O controle da mídia pelas verbas de publicidade orientou seu uso para a desinformação da população e a imposição do pensamento único, como se a ele não houvesse alternativa. “There is no alternative”, dizia Margareth Thatcher (31). Instituiu-se a falsidade como norma de comunicação, nos termos da propaganda repetitiva de Goebbels: uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Os dogmas do capital financeiro tornaram-se “verdades”. As mentes foram cobertas pelo véu da obscuridade, uma alienação que só a realidade da crise capitalista começa a desfazer. Foi possível, assim, quebrar a soberania dos países e a autoconfiança dos povos.
A luta do povo brasileiro, que conquistou a democracia e a Constituição cidadã, como a chamou Ulysses Guimarães, esbarrou nos interesses do capital financeiro que manipula o poder. A publicidade enganosa e a corrupção presidiram as reformas da Constituição, degradando as instituições e os serviços públicos, e reduzindo direitos dos cidadãos. Como consequência da política neoliberal, temos no país um desastre social. A corrupção generalizou-se, o aparelho de Estado enfraqueceu, pioraram os serviços públicos, com escolas e hospitais abaixo da crítica, a infraestrutura de transporte foi degradada e, em parte, privatizada. O Estado endividou-se sob a alegação do combate à inflação, passando a pagar juros altíssimos, manipulados pelos próprios banqueiros.
No ano de 2010 eles foram de 195 bilhões de reais. A participação do capital estrangeiro na indústria saltou de 25% para 70% em apenas duas décadas. Esta situação se agrava rapidamente. O orçamento da União para 2017 prevê uma despesa e 339,1 bilhões de reais com juros e encargos da dívida pública, enquanto para o pessoal ativo e passivo são destinados 284 bilhões. Como então pagar a dívida com economia nas despesas com o funcionalismo, se o total da folha de pessoal não é suficiente nem para pagar os juros anuais? Alem disso a arrecadação não é suficiente para a despesa com os juros, obrigando o orçamento a prever um déficit de 139 bilhões de reais, que será coberto por emissão de mais títulos públicos, aumentando a dívida e os juros a pagar. A intenção é alienar o patrimônio nacional para continuar a pagar os juros, entregando definitivamente a nação o controle da nação aos vampiros do capital financeiro internacional.
Os problemas ambientais tornaram-se mais graves. Aumentaram a concentração de riqueza e a violência. A solidariedade e a cooperação no trabalho cederam lugar à competição desleal e às animosidades. É nesse quadro que vicejam as conspirações contra os direitos do cidadão à escola e à medicina gratuitas, ao salário digno e à organização sindical independente para defender os trabalhadores. Os partidos políticos perdem suas doutrinas, bandeiras e programas, para tornarem-se associações de interesses particulares dos seus dirigentes e atender governos dóceis aos grandes investidores.
Esse processo se dá em quase todo o mundo, numa operação gigantesca de dominação dos países. Os grandes capitalistas entregaram-se à prática de negócios escusos, tráfico de influência, corrupção e especulação, que vieram à tona na grave crise de 2008, que até hoje desmantela países, mesmo europeus, como Islândia, Grécia, Espanha, Itália e Portugal. A Islândia foi à bancarrota, mas saiu da crise intervindo nos bancos e prendendo banqueiros. Os outros patinam no impasse das dívidas impagáveis. Não há mais como esconder o desastre que esse processo neoliberal está sendo para a humanidade. Sua política do dinheiro sem lastro, como paradigma de valor, é uma brutal subversão da verdade econômica e atinge os princípios humanistas dos direitos do homem e do cidadão.
O mais incrível é a passividade com que as pessoas veem esse quadro de ignomínias. A gravidade da situação gerada nos convence de que é preciso resistir. Até os governantes europeus se vergam aos interesses dos investidores em títulos públicos. Poucos são os homens lúcidos no meio de tanta perplexidade e desorientação. Um desses é o ex-presidente português Mário Soares. Ele fez uma feliz e precisa afirmação em entrevista ao jornal O Globo, publicada em 4 de novembro de 2011:
O que é extraordinário é que os dirigentes políticos atuais, aqueles que mandam ou julgam que mandam, como é o caso da senhora Merkel e do senhor Sarkozy, não mandam. Quem efetivamente manda hoje são os mercados, e não os Estados.
Rio de Janeiro, 23/12/2016.