Os novos barões do café (XXIV) – O retorno à política do conchavo e da manipulação


O retorno à política do conchavo e da manipulação

Arnaldo Mourthé

             Tancredo certamente tinha um plano capaz de fazer aquilo que prometeu nos seus comícios e confirmou no discurso de posse, lido por Sarney: restaurar a República e não pagar a dívida externa com a fome do povo. Sarney não era um republicano na sua essência. Era um quadro de primeira linha do staff político da ditadura militar. Ele trabalhara por muitos anos sob a tutela militar, fazendo suas vontades e viabilizando no Congresso uma estabilidade que servia ao governo. Não iria formular uma política de restauração republicana e de justiça social. No primeiro ano ele foi um simples administrador, voltado para os interesses políticos eleitorais, sua especialidade. A crise de 1981, que fez cair o PIB, havia passado. O PIB voltara a crescer em 5,7% no ano de 1984 e no ano seguinte mais 8,3%. Nesse aspecto Sarney sentiu-se confortável, mas nenhuma medida havia sido tomada para atender à expectativa de mudanças.

A inflação continuava corroendo os salários e dificultando a vida das pessoas sem que o governo se ocupasse com ela. Em 1984 ela acumulou 224%, em 1985 subiu para 235%. A população estava insatisfeita e o governo se desgastava. O ano de 1986 começou com um salto na inflação, de 13,2% em dezembro para 17,8% em janeiro. O alarme político soou no Planalto, pois os planos de Sarney de aumentar seu mandato em um ano e de levar o PMDB à vitória eleitoral naquele ano estavam ameaçados. O presidente mobilizou uma equipe de economistas para encontrarem uma saída. O resultado foi o Plano Sarney. A motivação maior deste ficou evidente com a observação do jornalista Carlos Castelo Branco na coluna diária no Jornal do Brasil de 28/2/86:

 

A partir de hoje, o tamanho do mandato do presidente Sarney estará definitivamente atado aos efeitos que produzirá o pacote de medidas econômicas a ser desembrulhado em cadeia de rádio e de televisão.

 

Ele se referia ao decreto-lei n. 2.283 (Plano Sarney), de 28/2/86, que:

 

– criava uma nova moeda: o Cruzado.

– congelava preços e salários (os preços de 28/2/86 e os salários pela “média real” dos últimos seis meses, com um pequeno acréscimo chamado abono);

– transformava as ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) em OTNs, congeladas por um ano;

– congelava as taxas de câmbio, passando o dólar a ser vendido a Cz$ 13,84;

– desindexava parcialmente a economia (as cadernetas de poupança continuavam a ser corrigidas pela inflação (IPC), não mais mensalmente, mas trimestralmente) (84).

 

Não faltaram aplausos ao plano. Houve até choro de uma famosa professora de economia, e louvações contundentes da grande imprensa. A torcida para que o plano desse certo foi enorme. Afinal a Nova República precisava dizer a que veio, para evitar um novo período de manifestações como as pela anistia e pelas Diretas Já!. Mas houve também as palavras de bom-senso de alguns economistas, jornalistas e políticos, como: Franklin de Oliveira, na revista Senhor de 11/3/86; Aloysio Biondi, em O Globo de 23/3/86; Roberto Mangabeira, no Jornal do Brasil de 16/3/86. Eu mesmo me aventurei na crítica ao plano, no meu artigo “Um engodo e duas velhacarias do decreto-lei”, no semanário O País – Nas Bancas, em 13/3/86. As sínteses desses artigos podem ser encontradas no meu livro Um desafio chamado Brasil (84).

No curto prazo, o Plano Cruzado teve êxito. A inflação que fora de 17,8% em janeiro e 14,9% em fevereiro, caiu para 5,52% em março e -0,58% em abril, seguindo-se baixa até dezembro, quando subiu para 7,56%. No plano político eleitoral, 1986 foi um ano magnífico para o governo. O PMDB fez a maioria dos governadores e suas bancadas cresceram no Congresso Nacional. O único político de expressão nacional que questionou o plano foi Brizola, então governador do Rio de Janeiro. Pagou o preço de ver o candidato à sua sucessão, Darcy Ribeiro, perder o governo para a euforia irresponsável. Mas o quadro mudaria rapidamente. O governo fizera um plano demagógico, com o objetivo de ganhar as eleições de 1986 e dar a Sarney mais um ano de governo, quando Tancredo havia prometido solenemente um governo de quatro anos.

O endividamento do país para investir em projetos megalomaníacos, causa da crise, não foi considerado. As divisas internadas eram compradas pelo governo com moeda nacional e reexportadas como pagamento de juros da dívida e transferência de lucros das multinacionais. Essa operação de compra pelo governo engrossava a massa monetária em circulação, gerando inflação. Esse processo ainda continua, com a entrada de capitais para comprar patrimônios no Brasil e especular no mercado financeiro.

A tentativa de conter os preços por decreto não considerou que os preços agrícolas flutuam com a sazonalidade, nem a eventualidade de eles serem promocionais. Além disso, foi uma solução impositiva, sem qualquer diálogo. As primeiras reações da indústria e do comércio foram respondidas por Sarney com um apelo à população para fiscalizá-los, denunciando-os como praticantes de “abusos”. Os conflitos multiplicaram-se. A reação dos produtores foi reduzir o peso do produto, ou sua qualidade, para manter o preço da embalagem. A qualidade das refeições servidas nos restaurantes caiu de forma escandalosa. Foi o caos. A realidade social desmoralizou os atos do governo.

Em 1987 a inflação foi crescente, começando com 12% em janeiro e chegando a 27,6% em maio. Já em abril, Sarney muda o ministro da Fazenda, entrando Bresser Pereira. Este encontrou uma inflação acumulada nos últimos doze meses de 366%. Em 16/6/87 ele lança o Plano Bresser, de natureza monetarista, mudou o nome da moeda para Cruzado Novo. Ele buscou a redução do consumo via redução do salário, e fez a inflação cair para 9,3% em julho, 4,5% em agosto, mas que voltou a crescer. O ano de 1987 fechou com uma inflação de 415,8%. O sonho da Nova República esgotou-se com seu primeiro governo.

Bresser Pereira procurou tirar um coelho da cartola com a política dos desesperados, de vender patrimônio para pagar dívidas, assunto que voltou à pauta do governo com o fracasso do Plano Cruzado. Essa questão já havia sido mencionada pelo Jornal do Brasil de 25/6/83, em declaração do ministro Camilo Penna, referindo-se a pressões do FMI, que poderiam levar o governo a vender algumas de suas estatais, como forma de obter recursos para saldar sua dívida externa (84). O risco tornou-se maior em um governo que não tinha respaldo civil ou militar. No governo Sarney o assunto tornou-se recorrente. Diversas matérias com esse tema foram publicadas nos principais jornais do país. Na Gazeta Mercantil, em 25/9/86 e em 25/3/87; no Jornal do Brasil, em 29/5/87, 2/6/87 e 3/6/87; no O Globo, em 3/6/87 e 23/8/87. A questão toma um aspecto perigoso quando Jorge Murad, genro de Sarney, leva a público uma proposta sobre a questão, através do Jornal do Brasil de 9 de julho de 1987. Vejamos uma síntese dessa matéria, escrita por mim no mesmo ano.

 

O genro e secretário particular do Presidente, Sr. Jorge Murad, apresentou à imprensa um documento intitulado “Estratégia para o Desenvolvimento”, cuja aplicação corresponderia à submissão do Brasil aos banqueiros internacionais. Ele propõe entre outras coisas:

“- Estabelecimento de liberdade para instalação de qualquer empreendimento no país, não necessitando de licenças ou autorização do governo federal, exceto quando tais investimentos demandarem incentivos ou subsídios federais.

– Não há restrição de crédito de organismos financeiros nacionais a qualquer empreendimento que tivesse metade do controle em mãos de residentes no país.

– Liberação da dívida externa para conversão em capital de risco, estimulando suas aplicações em investimentos considerados básicos.

– Criação de um conselho no âmbito da Presidência da República que garanta o fiel cumprimento das regras explicitadas, com membros do setor.” (84)

 

Conscientemente ou não, Sarney estava ensaiando a política econômica de interesse do capitalismo internacional, no Brasil e alhures, cuja consequência seria a desnacionalização da nossa economia, como veremos em análise sobre o neoliberalismo. Mas a tentativa sobre o patrocínio do Sr. Murad fracassou. Apesar de o Congresso estar empenhado na elaboração da nova Constituição, a manifestação contrária e firme de um grupo de parlamentares, através de Projeto de Resolução, matou a iniciativa na sua origem. Na verdade, a Nova República foi uma transição entre a ditadura e a fase dos governos submetidos à política do capital financeiro internacional, que vigorariam a partir de 1995. Voltaremos a essa questão mais adiante e nos últimos capítulos deste livro.

Rio de Janeiro, 22/12/2016

 

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