Leilão de Libra revela um país desgovernado
Arnaldo Mourthé*
No último dia 21 de outubro o governo brasileiro levou a leilão o Campo de Libra, a maior reserva de petróleo do Brasil. Ele está situado a 170 km em área marítima da costa do Rio de Janeiro, na zona econômica exclusiva do Brasil, ocupa uma área de 1,5 mil quilômetros quadrados, que contém, segundo pesquisas da Petrobrás, 12 bilhões de barris de petróleo passíveis de extração (dado oficial), podendo alcançar volume bem superior.
Libra faz parte de um conjunto de campos situados no Pré-sal, camada de sedimentos abaixo de uma espessa camada de sal. Os poços devem alcançar profundidades entre 5 mil a 8 mil metros, o que exige uma tecnologia muito sofisticada, só conhecida pela Petrobrás que a vem desenvolvendo em muitos anos de exploração de petróleo na costa brasileira.
Ao preço atual do barril de petróleo em torno de US$100,00, o valor da produção do Campo de Libra seria de US$ 1,2 trilhão de dólares, mais da metade do PIB anual do Brasil. Esse dado indica que a exploração do Campo de Libra terá forte repercussão na economia brasileira, sendo, portanto, uma atividade estratégica, que deve ser conduzida com estrita observância dos interesses nacionais e, particularmente, no que se refere a suas consequências sociais e ambientais. Isso implica em rígido controle governamental da sua exploração. Por ser uma atividade estratégica, a Lei nº 1235/2010, que regula a exploração do Pré-sal, deixa ao governo federal a opção para explorar diretamente o petróleo através de contrato de prestação de serviços com a Petrobrás, única detentora da tecnologia para tal. Neste modelo o petróleo extraído pertence ao Estado brasileiro, assim como os proventos de sua venda, respeitados os direitos a royalties, conferidos por Lei aos estados e municípios. A outra opção da Lei, para os casos não estratégicos, permite, como a Lei anterior de concessões, a possibilidade de leilão para empresas privadas, inclusive estrangeiras. Esta última foi a opção do atual governo, que julgamos inadequada e inaceitável, pelas razões que se seguem.
O negócio da partilha
No caso de leilão, sendo a Petrobrás empresa estatal, descobridora do campo e única empresa do mundo detentora da tecnologia de exploração do Pré-sal, a Lei da Partilha citada acima, impõe sua participação no consórcio com 30% do seu capital, como única operadora do campo de petróleo, podendo ela também participar do leilão. Foi o que ocorreu, ficando ela com mais 10% das cotas, enquanto 60% ficaram com empresas inglesa, francesa e duas chinesas. Apesar de apenas a Petrobrás produzir, as decisões do Consórcio são tomadas por sua direção constituída majoritariamente por empresas estrangeiras. Essas decisões serão, portanto, de seu interesse e não nos da Petrobrás ou do Estado brasileiro. Disso poderão decorrer muitas ações contra os interesses nacionais, dentre elas: o privilégio de fornecedores dos países dessas empresas, em detrimento dos brasileiros; a aceleração ou a protelação dos trabalhos de exploração, também em função de seus interesses, o que nos impede de fazê-los de acordo com nossa conveniência; não investir devidamente nas medidas de segurança contra acidentes, em geral catastróficos para o meio ambiente, o que já ocorreu em muitos lugares, especialmente e recentemente no Golfo do México, com danos incalculáveis; a ocorrência de desentendimentos provenientes de contestações da Petrobrás, do Estado brasileiro e de outras organizações nacionais, em relação a métodos, procedimentos e eventuais problemas fiscais ou financeiros em importações de equipamentos superfaturados, em benefícios dos sócios estrangeiros; nesse caso a exploração de um campo de petróleo nacional, descoberto por nós e explorado com tecnologia também nossa, passa a ser objeto de pendência internacional, julgado em tribunais internacionais, ou por organismos como a OMC e outros, ou de confrontos diplomáticos com os países interessados.
Pior que tudo isso é colocarmos parte do nosso patrimônio e do nosso território inseridos no quadro turbulento de disputas internacionais envolvendo o petróleo, que vêm ocorrendo há quase um século no Oriente Médio, onde as conspirações, golpes de Estado e conflitos de toda ordem são alimentados pela cobiça internacional, que já produziu diversas guerras, das mais brutais e desumanas, e transformaram aquela região na mais instável do planeta, apesar de suas riquezas.
Tudo isso torna incompreensível esta decisão do governo brasileiro em optar pelo leilão do Campo de Libra com a participação de empresas estrangeiras. As autoridades alegam problemas financeiros para fazê-lo. Mas suas alegações são vazias. O pagamento do ágio do Leilão de 15 milhões de reais seria necessário para cobrir buracos no fechamento das contas do governo. Mas não foi mais ou menos este valor que o governo concedeu de isenção fiscal às indústrias automobilística e de eletrodomésticos? Uma contradição. Ninguém pode dar o que não tem.
Seria esse ágio necessário para cobrir furo no orçamento, produzido pelo monumental pagamento de juros da dívida pública, que já monta nos últimos doze meses em cerca de 227 bilhões de reais? Se assim é, por que o governo permite ao Banco Central aumentar a taxa de juros que regula esse pagamento? 1% de aumento no juro anual, que incide sobre 2 trilhões de reais da nossa dívida pública federal, representam 20 bilhões de reais por ano. Talvez os técnicos e as autoridades federais não saibam fazer contas, ou estão escondendo do povo brasileiro informações estratégicas, que podem esclarecer as causas que tornaram a vida das pessoas tão difícil, apesar do otimismo do governo, e a razão pela qual a população foi às ruas para reivindicar mais e melhores serviços públicos, sendo então agredida pela polícia dos mesmos governos responsáveis pelos desmandos. Não adianta justificar essa violência inculpando “vândalos”, pois, se eles existem, é também por conta dos mesmos desmandos e de suas consequências, inclusive a violência policial.
O governo alega que terá grandes receitas em troca de sua dadivosa entrega do maior campo de petróleo do Brasil e do maior descoberto nos últimos 20 ou 30 anos em todo o mundo. Ele alega que o Estado receberá muito dinheiro, de sua participação em 41,65% do “óleo excedente”. Mas o que vem a ser essa expressão? É lucro da operação, ou seja, aquele petróleo que não é necessário ser vendido para cobrir as despesas da operação, que incluem não apenas as atividades da Petrobrás, mas todas as compras e prestações de serviços, no Brasil e no exterior, a administração das empresas do consórcio envolvendo seus quadros vinculados a essa operação da exploração, incluindo despesas indiretas contabilizáveis. Como as decisões empresariais cabem ao consórcio, majoritariamente estrangeiro, essas despesas poderão ser infladas sem que nosso governo possa impedir. Se o fizer poderá cair em um conflito comercial, com as consequências já mencionadas em parágrafo anterior.
Os técnicos mais experientes estimam despesa total de US$ 40,00 por barril de petróleo extraído. Assim sendo, o lucro bruto, sem maquiagem na contabilidade ou sobrepreços, ou “óleo excedente”, seria de US$ 60,00, ao preço de US$ 100,00 por o barril. Nesse caso o Estado teria uma participação de 41,65% sobre US$60,00, ou US$ 24,99 por barril. No total dos 12 bilhões de barris o governo receberia a quantia de 299,88 bilhões de dólares, o mesmo que o governo paga em três anos de juros da dívida pública federal, que só tende a crescer. Como o Campo de Libra tem tanto petróleo quanto tudo que o Brasil explorou até hoje, se a exploração for acelerada, ele poderia ser totalmente explorado em dez anos de intenso bombeamento, mas isso só ocorrerá daqui a cinco anos, tempo de maturação do empreendimento. Até o dinheiro começar a entrar, se entrar como veremos adiante, o Estado já teria desembolsado com o pagamento de juros quase o dobro do total a receber nos dez anos a partir daquele momento. Por que então tanto ênfase na exploração açodada do Campo de Libra, alienado ao controle estrangeiro? Parece até que ele resolveria assim os problemas do povo brasileiro e tiraria o governo da enrascada em que entrou com seu modelo neoliberal. Este desnacionalizou nossa economia, endividou o Estado e vem sangrando os serviços públicos e a população que tem, cada vez mais, de pagar ao setor privado aquilo que por direito receberia gratuitamente do governo se não houvesse tantos desmandos e tanto entreguismo.
O leitor já deve estar desconfiado que o Leilão fora uma armação, o que é fato, pois nem houve leilão, mas um conchavo a portas fechadas entre a diretoria da Petrobrás e empresas estrangeiras com consentimento e apoio do governo, que precisa apresentar serviço à população, mesmo que seja uma fraude. Numa visão crítica isenta, temos a considerar que o resultado pode ser melhor em um quadro de aumento do preço do petróleo, em que muitos acreditam, mas pode ser muito pior no quadro do agravamento da crise mundial, muito mais provável, reduzindo o mercado e o preço do petróleo. Isso poderá transformar o Campo de Libra em um fiasco comercial, por estar no mar, a profundidade maior que a média, de operação mais complexa e mais cara. Se o preço do barril cair para US$ 60,00, o “óleo excedente” reduz-se a um terço, reduzindo a renda do governo. O consórcio poderá desinteressar-se da exploração, mas poderá não devolver o controle da reserva. Ficaria o prejuízo dos investimentos da Petrobrás e um brutal problema para o governo, sem receita e sem o controle do seu maior campo de petróleo. Até parece que o governo optou por ser escravo do mercado mundial e do poder financeiro que o controla. Ele prefere administrar o país para o investidor, nem que para isso venda tudo, conceda os portos, aeroportos e rodovias, e venda o petróleo, o Banco do Brasil, do qual vai dispor de mais 10%, e quem sabe a própria Petrobrás? Quem viver verá isso, ou uma reação popular à altura!
Rio, 18/11/2013