Vamos construir nosso futuro VI


O embate entre o pensamento crítico e a ideologia

Arnaldo Mourthé

            O pensamento crítico questionou o dogmatismo da Igreja Romana que deu origem ao Renascimento. Mas este ainda não foi suficiente para clarear as mentes de forma ampla. Ele apenas liberou a Europa para exercer o seu direito à liberdade de pensar. Nós vimos como isso foi importante no florescimento da literatura, das artes e na pesquisa dos fenômenos da natureza, mas não atingiu o poder da realeza, apenas o centralizou com o absolutismo.

Esse processo de negação dos dogmas impostos pela Igreja Romana induziu os filósofos a escolherem entre os sentidos e a razão, como os caminhos para o conhecimento, formando as duas correntes filosóficas dos empíricos e dos racionalistas. O primeiro grande racionalista foi Descartes (1596-1650), que escreveu o Discurso do Método,  criou as coordenadas cartesianas, e teve grande influências sobre a formação filosófica na sociedade industrial. Como discípulo de Descartes veio Spinoza (1632-1677) que construiu um modelo filosófico que ele chamou de método geométrico. Ele era deísta. Para ele Deus é a totalidade, o conjunto de todas as  coisas, a substância única da qual o universo foi construído. Mas em geral as questões espirituais foram relegadas, como fonte do saber. Nesse sentido há a considerar os efeitos psicológicos da Inquisição em todos os pensadores, criando barreiras de autodefesa. Isso prejudicou a evolução  filosófica, mas não a impediu. Os moderados se contiveram e os audaciosos correram os riscos. Alguns foram parar na fogueira, mas isso faz parte da vida.

Os ensinamentos espirituais segundo os cristãos, assim como os judeus e os mulçumanos, provêm, da revelação. Os filósofos do Oriente, Lao Tsé, Confúcio e Buda, centraram sua atenção nas questões espirituais, da ética, da moral, das relações harmoniosa entre os homens e da fé em um poder transcendental.

Enquanto isso, a burguesia fortalecia seu poder econômico, e construía sua ideologia, disfarçada de filosofia, o liberalismo. Com seu modo de produção capitalista e com esse instrumento intelectual, ela chegou ao poder. O poder burguês gerou conflitos de interesse agudos na sociedade. Travou-se então um embate filosófico que se transformou em ações políticas através de organizações sociais, sindicatos e partidos políticos. Os desdobramentos desses conflitos geraram grandes acontecimentos, como a Independência dos EUA e a Revolução Francesa.

Paralelamente a essas questões, as investigações sobre os fenômenos da natureza   ganhavam corpo. Era preciso algo mais que a simples necessidade de experimentação para se compreender os fenômenos da Natureza. Foi nesse quadro que Francis Bacon (1561-1626), homem de Estado inglês com formação jurídica e filosófica e escritor, formulou os princípios de um método indutivo e experimental, refutando de um lado o empirismo espontâneo, assim como o racionalismo abstrato, unificando o caminho do método experimental, fundamento do conhecimento científico. Estava criada a ciência.

O século XVIII foi de grandes mudanças na sociedade. A principal manufatura capitalista, a indústria têxtil, só usava instrumentos rudimentares, não muito diferentes dos da produção artesanal A diferença estava no grande número de trabalhadores concentrados no mesmo lugar, e uma maior jornada de trabalho, de 16 horas, seis dias por semana, que superava em muito a dos artesãos. Mas a força motora eram os membros dos trabalhadores, que eram mal nutridos. A forma de conseguir uma maior produtividade foi instalar as indústrias à margem dos cursos d’água, onde poderia ser utilizada a sua corrente para movimentar a roda d’água. As indústrias puderam crescer

O capitalismo industrial nascido a partir da indústria têxtil na Inglaterra contava com grandes unidades industriais, instaladas à margem dos cursos d’água. que lhe permitiam lavar os tecidos e fornecia a corrente d’água para movimentar suas máquinas, através da roda d’água. Mas essa condição era limitada, e as indústrias ficavam longe dos centros de consumo. O transporte era problemático, no lombo do cavalo ou em carroças. As estradas ficavam sulcadas, outra dificuldade. Embora a espoliação do trabalhador fosse desumana, a indústria estava em um impasse.

Mas a ciência avançava rapidamente com o método experimental. Newton descobriu as leis da mecânica. Os inventores começaram a aplicá-las. Inúmeras máquinas de tecer e de fiar foram criadas e logo aperfeiçoadas, com grande aumento de produtividade. Mas havia ainda a limitação da força motora. Foi então que o engenheiro escocês James Watt (1736-1819), aperfeiçoou a máquina a fogo do mecânico inglês Thomas Newcomen (1663-1729), utilizando os estudos do físico e químico escocês Joseph Black (1728-1799), e cria a máquina a vapor, para ser utilizada no bombeamento de água das minas. Essa máquina passou a gerar a força motriz da indústria têxtil, que se libertou dos cursos d’água e pôde se instalar juntos aos portos. O poder industrial inglês cresceu.

Mas a máquina a vapor faria outras proezas. A partir dela e, ainda, para sua utilização nas minas foi criada a locomotiva a vapor pelo engenheiro mecânico inglês George Stephenson, da qual resultaram as estradas de ferro que o já iniciado Império Inglês, distribuiria para todo o mundo, e que faria da Inglaterra a maior potência industrial e imperial do mundo. Foi também utilizada nos navios, o que fez crescer o comércio marítimo e a espoliação colonial.

A ciência se evoluía em vários campos e com ela a tecnologia que produziu a famosa Revolução Industrial, que dava início àquilo que conhecemos por Civilização Industrial, que se expande de forma exponencial, a ponto de comprometer a própria Civilização da Humanidade, através da poluição da Natureza. Era preciso, diante dessa vertiginosa corrida industrial e tecnológica, aprimorar a civilização nos seus aspectos humanos. Coube aos operários fabris, e aos intelectuais das mais variadas origens, enfrentar esse desafio. Ele o foi através do avanço da filosofia e da organização dos trabalhadores, no seio da qual surgiram novos conceitos ideológicos para defender aqueles que eram submetidos, cada vez mais, na medida do desenvolvimento da produção capitalista, que impulsionava o poder burguês na sua aventura de expandir-se pelo mundo, tudo dominando e tudo transformando em mercadoria. A mais consistente reação nesse sentido foi a surgimento do movimento filosófico francês, que se uniu através de l’Encyclpédie, ficando conhecido como Iluminismo.

Só em meados do século XVIII os filósofos tratam da questão do poder de uma forma mais abrangente, considerando em plenitude o papel de todos os homens nas decisões sobre o destino das nações. Os primeiros a terem essa visão mais abrangente foram Voltaire (1694-1778) e Montesquieu (1689=1755). A eles se agregaram Diderot (1713-1784), D’Alembert (1717-1783), Rousseau (1712-1778) e muitos outros.

O movimento filosófico sentiu a necessidade de um instrumento de divulgação de suas ideias. Sob a inspiração da enciclopédia inglesa de Ephraim Chambers, foi criada a Enciclopédia ou Dicionário racional das ciências, das artes e ofícios, que teve como principais animadores Diderot, um intelectual eclético que publicou seus Pensamentos  filosóficos, de 1746, e D’Alembert, matemático e físico que escreveu, em 1743, seu Tratado de dinâmica, no qual ele anuncia seu Princípio de d’Alembert.  Entre os muitos colaboradores desse movimento destacamos Condorcet, o autor de um projeto de educação pública, que correspondia aos princípios enunciados pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela Assembleia Nacional, em 26 de gosto de 1789, imediatamente após da queda da Bastilha, em 14 de julho. Outro importante colaborador  foi Ferdinando Galiani (1728-1787), abade italiano que publicou, em 1751, seu livro Da moeda, um clássico da economia política.

Das penas de Voltaire e Montesquieu surgiram trabalhos importantes sobre a sociedade e as instituições. Voltaire era voltado para o teatro, sua forma escolhida de comunicar suas ideias e sua critica à sociedade. Montesquieu, com o livro Cartas persas, ganhou grande popularidade. Nele, critica a sociedade francesa num quadro de ficção de grande criatividade. Ambos defendiam a divisão de poderes na gestão do Estado, ensinamento que até hoje é adotada nos governos que se intitulam republicanos: os poderes Legislativo, que  faz as leis, o Executivo que as executa, e o Judiciário, que julga da legalidade dos atos praticados pelos poderes do Estado e pelo Cidadão.

Rousseau foi o filósofo mais importante do iluminismo, por ser aquele que conceituou de forma precisa a instituição republicana, uma utopia ainda não realizada integralmente, mas que se apresenta hoje como uma necessidade para resolver a crise brutal que a humanidade atravessa. Os acadêmicos traçaram dele um perfil de idealista, no sentido de buscar o irreal, assim como fizeram com Platão. Isso porque ele alcançou, como ninguém até hoje, um grau de abstração do fenômeno social e da necessidade de uma instituição que correspondesse às aspirações humanas de liberdade e igualdade. A Revolução Francesa assimilou seu ideal e acrescentou à liberdade e à igualdade, que  seu Contato Social institui, mais uma condição para a uma sociedade humanizada, a fraternidade. Estas três mensagens foram as principais legendas de Revolução, que também nos legou a necessidade de que esses direitos sejam garantidos com a Declaração da Assembleia Francesa.

O iluminismo também influiu na Declaração de Independência dos EUA. Mas dada a natureza das classes sociais nas 13 Colônias do Norte, que se libertaram do domínio inglês, sua Constituição reconheceu a legitimidade da escravidão, mostrando o caráter da burguesia e seu comportamento diferenciado entre a  Metrópole e as colônias. Mas o pensamento crítico também evoluiu, com o método dialético de Hegel que Marx adotou, com algumas particularidades, na sua análise sobre a natureza do capitalismo.

Rio de Janeiro, 21/07/2017.

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