Pensar o futuro é preciso! III


A questão da legitimidade do poder

Arnaldo Mourthé

Sun Tze nos indicou um caminho para construirmos o nosso futuro, o conhecimento, de nós mesmos e de nossos inimigos. Para conhecermos os dois, o melhor caminho é aprender com a história, especialmente com o que nos legaram os grandes pensadores.

Uma questão que nos colocamos a cada momento, diante da calamidade que enfrentamos, é a legitimidade do poder. O primeiro registro histórico que consegui encontrar sobre esse tema foi no livro Bhagavad Gita, de Krishna, um pensador espiritualista que viveu na Ìndia. Não há registro das datas de seu nascimento e morte. Admite-se que seja entre 3000 e 2500 A.C. Isso nos indica o quanto é antiga a questão da legitimidade do poder, que ele aborda de forma exemplar. O livro relata um diálogo entre Krishna com o príncipe Arjuna, no qual Krishna explica para seu interlocutor as razões pelas quais ele deveria combater.

Arjuna era o legítimo herdeiro de um reino usurpado por seus parentes e se recusava a lutar pela reconquista para não combater sua própria família. Ele tinha uma restrição moral para enfrentar o combate. Mas Krishna mostra-lhe que há uma razão ética para o combate, a legitimidade do poder e a defesa da população do reino das consequências das ações dos impostores.

A linha de pensamento de Krishna é espiritualista, que coloca a ética acima de uma questão moral convencionada pela sociedade, mas antiética. Vejamos como ele abordou o tema.

Já te disse, ó príncipe. Dois caminhos de libertação se abrem diante de ti: o caminho da sabedoria, para os que estão dispostos a meditar, e o caminho da ação para os que preferem agir sem apego.

Entretanto, esses dois caminhos são um só: ninguém se liberta da escravidão do seu agir pelo fato de não agir – e ninguém atinge a perfeição interior só por desistir da atividade externa.

Ninguém pode existir um só momento sem agir, a própria natureza o compele a agir, mesmo sem querer; pensar também é agir no mundo mental. […]

Cumpre, pois, o teu dever consoante a lei! Atividade é melhor que inatividade! Até a conservação do teu corpo exige ação; não há santidade sem ação. […]

 

Ele se refere também ao pensamento errôneo, à ilusão, que nós chamamos de alienação, a distorção da realidade. Mostra a dificuldade de resolver esse problema, e evoca Arjuna a assumir sua missão.

Difícil, ó príncipe, é romper o mágico véu que Maya [a Natureza visível] teceu em torno de todas as coisas e que encobre a minha face; mas quem me enxerga em tudo e sem reserva se entrega a mim [referindo-se a Brahman], este supera as limitações de Maya. […]

Ó forte herói! Os grandes inimigos do conhecimento da verdade são o apego e a aversão; são os contrastes dos opostos, que levam o homem ao caminho da ilusão.

 

Krishna, há cerca de cinco mil anos, já conhecia as questões centrais que nos afetam hoje. Os grandes pensadores que vieram depois, cada um na sua linguagem também colocam essa questão. Jesus de Nazaré o faz com seus principais ensinamentos do amor ao próximo, que é a essência da ética, e ressaltando a necessidade do conhecimento para vencer a ignorância e a alienação, ou ilusão, com a expressão: Conhecereis a verdade de a verdade vos libertará.

Outra abordagem da legitimidade de poder é a clássica. Ela está nos fundamentos da Republica: a origem do poder está na liberdade do homem, que o concede a seus representantes, sob condições, através de mandatos.

Rousseau sintetiza essa questão como se segue:

Contemplo os homens chegados ao ponto em que os obstáculos danificadores de sua conservação no estado natural superam, resistindo, as forças que o indivíduo pode empregar, para nele se manter; o primitivo estado cessa então de poder existir, e o gênero humano, se não mudasse de vida, certamente pereceria.

Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e dirigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a resistência, com um só móvel pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia.

 

Para isso é preciso:

 

[…] achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça, todavia, senão a si mesmo e fique tão livre como antes, […] e que esse é o problema fundamental que resolve o Contrato Social (104).

 

Segundo ele, a partir do princípio da liberdade inata do homem e da necessidade de este sobreviver em condições que exigem o concurso da força de outros que o apoiem, era preciso um pacto social que resultasse num contrato social, onde cada um abre mão de parte de sua liberdade em prol do bem comum, da sua sobrevivência, e da possibilidade de sua realização coletiva e individual. Ele considera que o pacto social resume-se a uma só questão, a um só artigo:

 

[…] a alienação total de cada sócio, com todos seus direitos, a toda a comunidade; pois, dando-se cada um por inteiro, para todos é igual a condição, e, sendo ela para todos igual, ninguém se interessa em torná-la aos outros onerosa.

Depois de feito o pacto,

 

[…] em lugar da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, o qual desse mesmo ato recebe sua unidade, o Eu comum, sua vida, e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava noutro tempo o nome de cidade, e hoje se chama república, ou corpo político, o qual é por seus membros chamado Estado quando é passivo, soberano se ativo, poder se o comparam a seus iguais. A respeito dos associados, tomam coletivamente o nome de Povo, e chamam-se em particular Cidadãos, como participantes da autoridade soberana, e Vassalos, como submetidos às leis do Estado.

 

 

A concessão da liberdade do cidadão ao corpo social, a República, não implica na perda de sua liberdade inata. Ele apenas assume o compromisso de não limitar a liberdade do outro, seu associado no Contrato Social, também cidadão. Isso que dizer apenas que ele assume um compromisso ético, de respeitar o outro, que é o mesmo que prega Jesus, amar ao próximo como a si mesmo.

Portanto, qualquer alegação de um mandatário no contexto de um regime republicano de que pode usar seu mandato a seu proveito é falso. O mandato é estrito ao cumprimento da condição fundamental da Repúbica que é respeitar a vontade geral dos cidadãos e legislar sobre relações especiais entre cidadãos, desde que a condição, a vontade geral, seja estritamente respeitada. Qualquer outro comportamento não é republicano, mesmo que vestido da roupagem da “democracia”, que nesse caso deixa de ser no quadro de uma República de todos para ser apenas de uma casta de privilegiados.

Com as considerações acima, podemos afirmar que os governos que temos tido, pelo menos nos últimos mandatos abandonaram a República no seu sentido mais amplo, com seu desrespeito contumaz dos direitos e da vontade dos cidadãos.

Rio de Janeiro, 03/6/2017

 

 

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