Os novos barões do café (IV) – A República Velha II


A República Velha II

Arnaldo Mourthé

Apesar do recuo na expansão das ferrovias nos países mais industrializados, a partir da crise econômica de 1907, ela continuou nos países pouco industrializados. Sua implantação gerava mercado para as metrópoles industriais, em especial a Inglaterra, e não produziam mercadorias para competir com suas indústrias. Além disso, facilitava a exportação de produtos primários dos países periféricos, suprindo as necessidades dos países industrializados. Assim sendo, foram prodigamente financiadas. Mas, como desbravadoras de territórios pouco explorados, não produziam retorno em curto prazo do investimento que, dessa forma, teria que ser público ou subsidiado, se privado. Usava-se a concessão de terras ao longo das ferrovias aos seus construtores, e subsídios governamentais para sua construção.

Em 1889, poucos dias antes da proclamação da República, o imperador D. Pedro II havia concedido ao engenheiro João Teixeira Soares a construção de uma estrada de ferro ligando Itararé (SP) a Santa Maria (RS). Para executar o empreendimento foi constituída a Cia. de Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande. Em 1897 as obras foram iniciadas a partir de Itararé. Em 1905 a ferrovia alcançou o rio Iguaçu, em Porto União, concluindo seu primeiro trecho. O norte-americano Faquhar se interessou pelo empreendimento porque a ferrovia cortava uma região de grandes florestas. Ele vislumbrou grandes lucros com a venda da madeira. O mesmo que aconteceu com a Estrada de Ferro Leopoldina, que permitiu a devastação da Mata Atlântica, nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. A concessão dava a posse de uma faixa de 30 km ao longo da estrada, 15 km de cada lado do eixo da ferrovia, além de pagamento por quilômetro construído e de juros de 6% ao ano pelo dinheiro investido pelo concessionário. Faquhar comprou o controle da Cia. concessionária e contratou milhares de trabalhadores.

Havia, entretanto, ao longo da via milhares de camponeses posseiros. Estes resistiram à tomada das terras que eles ocupavam há décadas. O governo foi chamado a intervir. Os posseiros se organizaram e se armaram com o que foi possível obter. Ocorreu um grande conflito. O Exército foi chamado para desocupar as terras. Houve uma guerra que durou de 1912 a 1916. No embate foram envolvidos por parte do governo 8.000 homens, sendo 7.000 militares e mil civis, e dos posseiros, cerca de 10.000 homens e uma população de vinte mil pessoas. O número de mortos ou desaparecidos não são precisos mas estimados entre 5.000 e 8.000, entre os revoltosos, e de 800 a 1.000 entre as forças do governo, soldados e civis. Esse é um fato pouco conhecido, porque não interessava minimamente aos senhores do poder.

Mas quem era esse Faquhar? Ele era engenheiro e gestor de transporte em Nova York. Ele veio ao Brasil para abrir mercado para o sistema financeiro norte-americano, numa época em que os Estados Unidos substituía a Inglaterra como maior economia mundial. Mas sua entrada nos negócios no Brasil foi através de uma operação nebulosa, que escandalizou os estudiosos da matéria. Ele emitiu ações e, lastreado nelas, títulos, em um emaranhado de manipulações de documentos que diluía a responsabilidade do tomador e dava ao investidor a sensação de segurança. Ele fez isso comprando, em contrato de gaveta, a concessão da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, na construção da qual morreram 1.500 trabalhadores.

As estradas de ferro eram de interesse dos ingleses, que as usaram para expandir seu poder sobre o mundo daquela época, em que “no seu Império o sol brilhava sempre”. Mas elas foram um fator decisivo na conformação da Nação brasileira. Elas foram um elemento indutor de desenvolvimento, facilitando o transporte de carga e passageiros. Intensificaram o comércio e ajudaram na integração nacional do Brasil. Facilitou também a comunicação com a introdução do telégrafo, essencial na sua operação, e também elemento integrador da sociedade brasileira. Até então esta se desenvolvia nas costas e ao longo de vias fluviais, como o Amazonas. As exceções eram raras, como a região do ouro em Minas Gerais,

As ferrovias foram um elemento fundamental na industrialização do Brasil. Não apenas pelo acesso ao centro do país – que permitiu o nascimento da indústria têxtil em Minas Gerais – mas também pela necessidade de oficinas de apoio à sua operação, formando novos técnicos e engenheiros. Com elas e com a industrialização a urbanização cresceu, e a sociedade brasileira modificou-se na sua formação de classes sociais e no surgimento de novas ideias e ideologias. D. Pedro II, como homem ligado às inovações que ocorriam pelo mundo afora, o que fez dele um entusiasta da ferrovia, como do telefone, outro meio de comunicação que complementava o telégrafo.

Os estados de São Paulo e de Minas Gerais foram os mais beneficiados nesse processo de avanço tecnológico nos transportes e na comunicação, desenvolvendo seus centros urbanos e sua indústria. O primeiro estado mais que o segundo pela riqueza do café, que lhe permitiu receber um grande número de migrantes europeus, que vieram não só ocupar postos de trabalho nos cafezais em expansão, como na indústria fabril e da construção civil. Tudo isso submetido ao poder controlado pelos barões do café.

O crescimento da indústria, e a urbanização dele decorrente, geraram fortes mudanças na sociedade brasileira. Criou-se uma classe social nova, o operariado industrial, e desenvolveu-se uma forte classe média nas atividades liberais, do comércio, e da administração pública e privada. Em um quadro político totalmente dominado pelos barões de café, os conflitos sociais foram inevitáveis. A população urbana se organizou. A divisão política não se fazia mais apenas no confronto de liberais e conservadores. Desenvolveu-se a organização dos trabalhadores e, no campo do pensamento, aflorou-se uma intelectualidade expressiva. Não havia mais a dicotomia liberal ou conservador, todos se diziam republicanos. Uns mais, outros menos. Não havia muita clareza sobre essa questão. Os conceitos republicanos como divulgados por Rousseau eram conhecidos por poucos. Mas o poder dos barões do café, e sua república fajuta, onde apenas uma classe social se sentia com direitos, foram sendo sacudidos pelos setores mais avançados da sociedade, intelectuais, empresários e os trabalhadores em geral. Afinal, a República era ou não era “um governo do povo para o povo”, como afirmavam os políticos? Uma nata de trabalhadores, nos serviços públicos e privados, passaria a ter importância fundamental na condução da sociedade. A eles cabia a função de atender à sociedade como um todo, e não apenas administrar as máquinas estatal e privada. Também era deles a missão de prestar os serviços essenciais à população, cada vez mais urbanizada e à qual eles pertenciam..

Os desdobramentos desses fatos foram de grande importância na formação da sociedade brasileira moderna. Os conflitos de interesse entre uma casta de privilegiados e a população que produzia o desenvolvimento do país, com seu trabalho e suas frustrações, resultariam em eventos que foram, e ainda são, marcantes na nossa história. Essas questões serão tratadas no próximo artigo.

Rio de Janeiro, 03/11/2016

 

 

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