Papa Francisco


Papa Francisco

Em suas análises da postura e das palavras do Papa Francisco, alguns teólogos vislumbram o retorno às origens do cristianismo. Mas o que significa isso?

Essa questão é tratada de forma sucinta e precisa no livro História e Colapso da Civilização, de Arnaldo Mourthé, editado por nós.

Veja a seguir dois capítulos desse livro que trata dessa questão. Leia-os com atenção. Eles são importantes!

O editor.

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Jesus de Nazaré e os fundamentos da revolução silenciosa do cristianismo

O cristianismo surgiu cinco séculos depois da grande leva de líderes religiosos e filósofos dos meados do milênio anterior, Lao-Tsé, Confúcio, Buda, Sócrates e Platão. Apesar disso ou, talvez por isso mesmo, ele tenha tido tamanha importância. Quem pode afirmar que as influências desses pensadores não estão presentes nos ensinamentos de Jesus de Nazaré? Pelas semelhanças, os textos indicam o contrário. Mas que ensinamentos são esses? A Bíblia, o livro mais lido do mundo, está aí para divulgá-los, mas ela não contém todos eles, já que seus textos passaram pelo crivo de teólogos e autoridades religiosas. Mas ela contém muito da essência deles.

Enquanto Buda pregou o Caminho do Meio como método para a aproximação com o Divino, Confúcio difundiu a Harmonia como a essência das relações humanas saudáveis, Jesus pregou o Amor. Qual a diferença? O Caminho do Meio é o equilíbrio, a superação das nossas contradições, das ilusões que nos impedem de ver pela presença da ignorância em nós, o véu de Maia. A Harmonia é o resultado da tolerância para com o outro, o respeito ao próximo, a condição que inibe o conflito e permite a cooperação entre os homens. O Amor é a mesma coisa. Não confundir o Amor cristão com a atração entre duas pessoas, que em geral o contém, mas não é o Amor no seu sentido mais profundo. O Amor cristão é o respeito ao próximo e à vida: Amai ao próximo como a ti mesmo. Ninguém se ama porque tem atração por si mesmo, mas porque se respeita, porque sabe o quanto custa desrespeitar-se, tanto no plano psicológico quanto no físico. A falta de amor induz à negligência, ao desrespeito, a admitir-se inferior sem o ser, ou negar ao outro sua condição de igual. O desamor é destrutivo, o amor é construtivo. Vemos que a essência dos ensinamentos de Buda, Jesus e Confúcio é a mesma. A diferença está no fat o da transcendência, que no budismo é a Iluminação, que eleva Siddharta Gautama à condição búdica, Buda. Segundo o cristianismo, Jesus de Nazaré já teria vindo à terra como Cristo, alguém que havia passado pela Ascensão, à condição crística, ou a Cristo. Na verdade as diferenças são uma questão de terminologia e as similitudes não são coincidências. Confúcio trata da sociedade concreta, da relação entre pessoas de carne e osso, e de suas instituições, buscando a verdadeira harmonia entre elas. A questão transcendental em Confúcio é mais no sentido da superação do ser humano, percorrer o caminho da sabedoria, enquanto na visão religiosa é a sublimação, tornar-se sublime. Confúcio foi um filósofo. Ele ensinava as virtudes de seus ancestrais na busca da harmonia, mas sem misticismo.

Para melhor precisar os ensinamentos cristãos, selecionamos textos não polêmicos, mas representativos de sua essência, que são de grande beleza estética e moral, como a recomendação maior de Jesus de Nazaré, amai ao próximo como a ti mesmo, o Sermão da Montanha e sua auto-definição, Eu Sou o que Eu Sou. Todas elas são manifestações fundamentais para a compreensão do cristianismo. Para ampliar esse quadro, acrescentamos os ensinamentos de Paulo, o Apóstolo, em 1 Coríntios XIII. Esses textos oferecem uma visão da essência do cristianismo que nós encontraremos na prática de alguns, mas não de todos.

O Sermão da Montanha:

Bem-aventurados os pobres (mendigos) de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.

Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a Terra.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.

Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão Deus.

Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.

Bem-aventurados os que sofrem perseguição em nome da justiça, porque deles é o Reino dos Céus(54).

 

Perguntado sobre quem era ele, Jesus de Nazaré respondeu: Eu sou o que Eu sou. Ou seja, eu sou em essência a Divindade, o Indefinível, nas palavras de Lao-Tsé. Nos textos da Fraternidade Branca encontram-se um grande número de expressões dessa natureza. Nelas Sou é escrito com inicial maiúscula porque representa a Divindade. Segundo seus escritos, dizer, Eu Sou, é o mesmo que dizer, Deus em mim é.  Na Bíblia a expressão Eu so u consta sete vezes:

 

Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.

Eu sou o Sal da Terra.

Eu sou o Pão da Vida.

Eu sou a Vida verdadeira.

Eu sou a porta aberta que homem algum poderá fechar.

Eu sou a Ressurreição e a Vida.

Eu sou a Luz do Mundo (54).

Os textos referidos acima são a síntese dos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Mas a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios torna-os mais explícitos, como mostra o texto abaixo, um verdadeiro hino ao amor.

 1. Eu poderia falar todas as línguas que são faladas na terra e até no céu, mas, se não tivesse amor, as minhas palavras seriam como o som de um gongo ou como o barulho de um sino.

2. Poderia ter o dom de anunciar mensagens de Deus, ter todo o conhecimento, entender todos os segredos e ter tanta fé, que até poderia tirar as montanhas do seu lugar, mas, se não tivesse amor, eu não seria nada.

3. Poderia dar tudo o que tenho e até mesmo entregar meu corpo para ser queimado, mas, se eu não tivesse amor, isso não me adiantaria nada.

4. Quem ama é paciente e bondoso. Quem ama não é ciumento, nem orgulhoso, nem vaidoso.

5. Quem ama não é grosseiro nem egoísta; não fica irritado, nem guarda mágoas.

6. Quem ama não fica alegre quando alguém faz uma coisa errada, mas se alegra quando alguém faz o que é certo.

7. Quem ama nunca desiste, porém suporta tudo com fé, esperança e paciência.

8. O amor é eterno. Existem mensagens espirituais, porém elas duração pouco. Existe o dom de falar em línguas estranhas, mas acabarão logo. Existe o conhecimento, mas também terminará.

9. Pois os nossos dons de conhecimento e as nossas mensagens espirituais são imperfeitos.

10. Mas quando vier o que é perfeito, então o que é imperfeito desaparecerá.

11. Quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança e pensava como criança. Agora que sou adulto, parei de agir como criança.

12. O que agora vemos é como uma imagem imperfeita num espelho embaçado, mas depois veremos face a face. Agora o meu conhecimento é imperfeito, mas depois conhecerei perfeitamente, assim como sou conhecido por Deus.

13. Portanto, agora existem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor. Porém a maior delas é o amor (5).

Encontramos no item 12 dessa mensagem a referência à precariedade, que está também em Platão, quando ele compara a idéia com a realidade física. A perfeição da primeira e a imperfeição da segunda. Também há semelhança na imagem imperfeita num espelho embaçado, de São Paulo, com a alegoria da caverna de Platão, e com os ensinamentos de Buda e de Krishna, nas suas referências às ilusões e ao véu de Maia. A comparação da criança com o adulto revela a deformação que o homem sofre na sua adaptação ao mundo da ilusão e da precariedade, à realidade social forjada no interesse e na imposição de uns sobre os outros.

O Cristianismo e o Império Romano

Quando Jesus nasceu Roma já era a senhora absoluta do Mediterrâneo. Dominava toda a Europa latina, parte da Germânia, os Bálcãs, a Turquia, o Oriente Médio até a Mesopotâmia e todo o norte da África. Ela era um grande Império, sustentado por um exército de 300 mil soldados efetivos e notáveis estruturas administrativa, diplomática, comercial, com muitas grandes e belas cidades, e uma rede de estradas nunca vista.

O apóstolo Pedro fundou, com seu companheiro Paulo, a comunidade cristã de Roma e foi seu primeiro bispo. Antes, ele havia exercido o episcopado em Antioquia, local de forte concentração cristã na antiguidade. Visitara Roma antes de lá estabelecer-se, mas teria sido expulso pelo imperador Claudio, junto com outros cristãos e judeus. Voltou a Jerusalém e participou do primeiro Concílio dos Apóstolos, na condição de bispo de Roma, portanto o número um da Igreja. Apesar de tudo indicar que Nero fora o autor do incêndio de Roma, ele o atribuiu aos cristãos e ordenou que eles fossem massacrados. O bispo Pedro foi crucificado.

Apesar da repressão do poder romano e de não serem reconhecidas pelas elites, havia comunidades cristãs em Roma que se integraram com as de não-cidadãos, às quais deram extraordinária contribuição, através de suas ações humanitárias. Suas associações eram diferenciadas das outras, por serem abertas e beneficiarem também a não cristãos. Sobretudo os estrangeiros recém chegados, migrantes excluídos da cidadania como eles. Sua ação foi generosa, hospedando pessoas, arrecadando fundos para libertar os escravizados por dívidas e fazendo funerais de pessoas despojadas de recursos. Seus banquetes eram semanais, no dia do Senhor, o que fazia deles uma comunidade em permanente contato. Essas ações foram tão importantes para a expansão do cristianismo quanto as pregações dos apóstolos, ou mais que elas. Elas repercutiram junto aos romanos, desde as populações mais pobres até os patrícios e senadores. Muitos as viam como virtuosas e geradoras da paz social. Os cristãos não participavam de levantes e pregavam a não violência. O comportamento cristão foi mais importante para seu reconhecimento pelas classes superiores de Roma e por seus mandatários, que a palavra dos seus pregadores.  (48)

Mesmo assim houve conflitos entre os cristãos e Roma, que duraram pouco mais de 250 anos. Suas causas eram a discriminação dos romanos em relação aos não cidadãos e a necessidade do Império de ter um bode expiatório, a quem culpar pelos problemas do povo. Em períodos de tranqüilidade, houve tolerância, com conflitos apenas ocasionais. Com o tempo, sobretudo ao longo da crise que debilitou o Império no Século III, as autoridades passaram a ver os cristãos como um problema solucionável pela via política, até mesmo como solução para fortalecer o Império. Indo além dessa avaliação, Constantino transformou os cristãos em aliados.

No ano 325 ocorreu um evento que foi fundamental na formação da Igreja Medieval, o Concílio de Nicéia. Havia um conflito de idéias entre os cristãos que o imperador Constantino queria resolver. De um lado estava o bispo Alexandre, de Alexandria, e seu diácono Atanásio, do outro o padre líbio Ário. Tratava-se de conceitos teológicos sobre a natureza divina de Jesus, sobre a união do homem com Deus e sobre a reencarnação. Na sua condição de imperador, Constantino via nas divergências de idéias religiosas dos cristãos uma vulnerabilidade, tanto para a Igreja quanto para o Império. Era preciso reencontrar a unidade a favor dos interesses das duas instituições.

Os registros históricos mais antigos mostram que cada povo tem sua visão do mundo e cultua as divindades representadas nas suas crenças, mitos e religiões. Com o advento da filosofia, os pensamentos de alguns filósofos se incorporaram em muitos povos modificando essas visões do mundo. Formaram-se grupos que estudavam as várias manifestações culturais e, especialmente religiosas. Algumas delas eram assimiladas. Depois das conquistas de Alexandre, a cultura grega expandiu-se pelo Mediterrâneo e Oriente Médio, influindo nas culturas locais e sendo influenciada por elas. Alexandre defendia a difusão da cultura grega, mas, também, a liberdade de culto para todos os povos colonizados. Por outro lado, a expansão do comércio para o Orie nte, produziu trocas que foram além das mercadorias. Os conhecimentos e crenças se interpenetraram. Houve influência mútua no pensamento dos homens cultos, que mais tarde alcançou a população, embora de forma fragmentária e rudimentar. O caldeamento de culturas oferecia uma oportunidade de aprendizado e era um teste para os conhecimentos e crenças dos povos concernidos. Quando Jesus nasceu, a Palestina era dividida entre as culturas judaica e grega, que conviviam em certa harmonia. Isso era de interesse dos romanos e das autoridades judaicas, intermediárias nas relações dos romanos com a população.

Jesus teve acesso a muitos conceitos que não se limitaram à cultura do seu povo, assim como ele e seus seguidores puderam fazer suas pregações com muita liberdade, graças à liberdade de culto. De outra maneira seria muito difícil enfrentar as estruturas políticas e religiosas judaicas. Enquanto o poder não se sentiu ameaçado, ele gozou de liberdade, até de prerrogativas, já que descendia de estirpe nobre. Quando ocorreu o contrário, ele foi crucificado. Morto Jesus, seus apóstolos continuaram sua pregação, como ele pedira e para o que ele os preparou. Essas pregações eram feitas através de alegorias, quase sempre pela reprodução oral dos ensinamentos do Mestre. Mas esses também morreram. Muitos foram os homens do povo que , individualmente ou em grupo, aderiram à nova religião. As interpretações das pregações dos apóstolos eram variadas e cada qual acrescentava o que lhe parecia correto ou conveniente, enquanto a Igreja que Pedro fundou em Roma era incipiente para coordenar todos os cristãos. Vieram as versões escritas do Evangelho. Essas também requeriam interpretações que variavam conforme o ponto de vista e o conhecimento dos que o faziam. Os alfabetizados eram poucos. Os conhecimentos eram precários e transmitidos oralmente. Sua manipulação ocorria por razões as mais variadas.

Enquanto viveu, Jesus enfrentou polêmicas, confirmadas pelo Evangelho e por outros documentos. Elas se deram no confronto dele com os sacerdotes judeus e com as diversas correntes de pensamento dos povos que coabitavam na Judéia. Havia também na Palestina  seguidores dos filósofos gregos, sobretudo os neoplatônicos e os pitagóricos. Além desses os gnósticos cristãos, os seguidores do orfismo e das doutrinas orientais trazidas da Índia por mercadores e sacerdotes hindus, no intenso intercâmbio através do Mar Vermelho e pela Rota da Seda, aberta pelos chineses um século antes. Há ainda a hipótese de que Jesus teria vivido na Índia, onde fora instruído por místicos hindus e por budistas, no período em que o Novo Testamento não se refere a Jesus, entre seus 13 e 29 anos. Mas foi nos séculos II e III, muito depois da sua morte e das de seus apóstolos, que essas polêmicas se agudizaram. Quem teria razão sobre quais foram os seus ensinamentos?

Até hoje se discute sobre versões dadas no Evangelho às palavras de Jesus, sobretudo, das lacunas deixadas pelos expurgos de textos, a critério do Papa e de seus teólogos. Teriam eles sido praticados por razão de sua natureza, ou apenas para tornar o texto mais compreensível? As revisões foram fiéis aos significados das suas palavras? Qualquer que seja a verdade, o fato é que, no final do século III, a controvérsia sobre a natureza dos ensinamentos de Jesus tornou-se aguda, dentro e fora da Igreja.

Foi nesse quadro que ocorreu o clamoroso diálogo entre o bispo de Alexandria, Alexandre, e o padre líbio, Ário, no início do Século IV, que provocou a intervenção do imperador Constantino. O bispo Alexandre fazia uma preleção sobre a Santíssima Trindade quando o padre Ário pôs-lhe uma questão:

Se o Pai gerou o Filho, aquele que foi gerado teve um início de existência. …  Houve um tempo em que o Filho não existia (94).

Essa simples questão de lógica provocou um terremoto. Alexandre convocou, em 320, um concílio em Alexandria para condenar os erros que ele via em Ário. Mas a iniciativa só causou mais polêmica. A frase Houve um tempo em que o Filho não existia andou de boca em boca por toda Alexandria.

Logo todos os comerciantes tornaram-se teólogos. Dos cambistas aos funcionários dos banhos públicos, cidades inteiras discutiam se o Filho havia tido um princípio (94).

Mas o que havia de tão significativo em toda essa história?

A controvérsia ariana versava sobre a natureza do homem e o seu processo de salvação. Ela envolvia duas imagens de Jesus Cristo: ou era um Deus que havia sido sempre Deus, ou era um homem que se tornou Filho de Deus (94).

O sentido do questionamento de Ário era sua convicção que todos os homens são filhos de Deus e, assim, têm a oportunidade de unir-se a Ele, através de uma prática de amor e um comportamento justo, ao longo de sua vida dividida em várias encarnações. Se nos reportarmos às religiões orientais, encontraremos em Krishna e em Buda, os fundamentos da posição de Ário. Mas essa talvez não viesse diretamente do Oriente. É mais provável que fosse uma continuidade da visão de Orígenes (185-254) que viveu em Alexandria, onde foi dirigente da escola de catequese cristã e acreditava no livre-arbítrio e na reencarnação. Na polêmica sobre as razões do tratamento diferenciado de Deus aos gêmeos Esaú e Jacó, netos de Abrão, que pre ocupou o Apóstolo Paulo e mais tarde Santo Agostinho, Orígenes tirou uma conclusão lógica.

Ele acreditava que a única resposta a esta questão era que Jacó e Esaú haviam tido vidas anteriores, em que mereceram o “amor” e o “ódio” de Deus. Só podemos acreditar que Deus é justo, escreveu, se acreditarmos que Jacó foi preferido desde o ventre pelos seus “méritos de alguma vida anterior”. Em seguida, Orígenes chegou a uma conclusão teológica que os gnósticos poderiam aceitar facilmente. Disse que a questão que envolvia Jacó e Esaú poderia ser aplicada a todas as pessoas (94).

Foi essa a questão que fez Constantino intervir na polêmica. Com sua postura de estadista, ele via nesse conflito um potencial negativo para o Império e para a Igreja. Era melhor que o homem acreditasse no seu pecado original e que dependesse da Igreja para sua salvação. Crer em sua origem divina, como a de Jesus, e na sua possibilidade de unir-se a Deus por seu esforço próprio, levando uma vida de amor e de autocontrole, aumentaria sua autoconfiança e lhe daria forças para a superação do medo de queimar-se pela eternidade no fogo do inferno. Uma população temente a Deus e dependente da Igreja para sua salvação seria mais fácil manipular, no interesse do Estado e do poder da hierarquia da própria Igreja. O melhor conceito para o deus do povo era o antropomorfo, autoritário e punitivo em relaç ão aos que renegassem a fé, e representado na Terra pela Igreja e pelos ungidos do poder divino.

Ver na posição de Ário um perigo para o poder constituído foi decisivo para a posição de Constantino e do Concílio de Nicéia, como foram para as autoridades da Judéia as pregações de Jesus. O Concílio condenou Ário, que foi banido do Império, junto com os dois bispos que o apoiaram e com as idéias de Orígenes. Para divulgar isso, editou-se um credo para ser rezado em afirmação à condição de Jesus como único filho de Deus que encarnou e foi feito homem. Constantino convocou e dirigiu o Concílio como chefe, na ausência do Papa, embora não fosse autoridade da Igreja, nem batizado. Ele abraçou o cristianismo em 312, mas seu batismo só ocorreu horas antes de sua morte, em 337. Ele acred itava que esse sacramento o tornaria livre de todos os pecados. Recebê-lo pouco antes de morrer evitaria que ele cometesse outros pecados que ficassem sem perdão. Com isso, pensava ele, alcançaria a vida eterna, aspiração comum a muitos dos personagens do Mundo Antigo. Do Concílio participaram apenas 300 bispos, o que não impediu o confronto, mas facilitou o trabalho do Imperador e dos ortodoxos na sua condenação àqueles que a partir dali seriam dissidentes e mais tarde estigmatizados como hereges.

Constantino quis impor as decisões do Concílio a toda a Igreja, mas as idéias deixadas por Orígenes, que ele queria combater, eram muito fortes e persistiram. Muitos foram aqueles que não aceitaram o Credo de Nicéia. Na sua pregação aos Coríntios, Paulo havia dado um forte argumento aos origenistas e ao próprio Ário, quando afirmou: Não sabeis que sois templos de Deus? Que ele habita em cada um de vós? (54)

O destaque dado aqui a essa questão deve-se aos seus desdobramentos em eventos históricos de grande importância, muitos deles trágicos. Negar as posições dos arianos e as idéias de Orígenes era um passo fundamental para a definição do perfil da Igreja daí para frente. Ela teria seus cânones repletos de mistérios e dogmas intocáveis, elaborados para a afirmação de uma autoridade que se considerava indiscutível, como representante de Deus na Terra e intermediário entre Ele e os homens.

Mas as idéias condenadas persistiram entre os cristãos para além do Século IV, sobretudo no Egito. Seu centro principal era Alexandria, mas espalhava-se pelo deserto, pelo alto Egito e por toda a costa do Mediterrâneo até a Palestina e Chipre. Talvez por isso o imperador Teodósio (379-395), tenha exigido a adoção pelo clero das decisões do Concílio de Nicéia.

Sob Teodósio, os cristãos, perseguidos durante tantos anos, tornavam-se agora perseguidores. O Deus feito à imagem e semelhança do homem mostrava-se intolerante. Os cristãos ortodoxos aplicavam sanções violentas contra todos os hereges (gnósticos e origenistas), pagãos e judeus. Nesse clima, tornava-se perigoso professar idéias sobre a divindade inata e a busca da união com Deus (94).

Teófilo, bispo de Alexandria, em 399, defendeu em carta as idéias de Orígenes, mas teve contra ele uma forte reação de monges ortodoxos, que lhe impuseram uma mudança de conduta. Em 400, ele convocou um concílio em Alexandria que condenou os textos de Orígenes. Em Roma o Papa promulgou uma condenação semelhante e encorajou a seguirem seu exemplo (94). Estavam criadas as condições para uma repressão aberta contra os seguidores daquelas idéias. Como conseqüência, os líderes de uma colônia de monges de Nítria, ao sul de Alexandria, foram expulsos. Em seguida, Teófilo requisitou as tropas imperiais, invadiu a comunidade, aprisionou os 300 monges remanescentes que foram enviados ao exílio e d ispersados, e incendiou sua biblioteca e as celas. O tempo de Serapis, construído por Ptolomeu seiscentos anos antes e considerado pelos ortodoxos como o símbolo do paganismo, foi destruído por uma multidão incitada por Teófilo. A horda destruiu também pelo menos mais uma grande biblioteca de Alexandria. Essa mesma prática repressiva ocorreu também em Chipre.

Alguns anos mais tarde foi Cirilo, também bispo Patriarca de Alexandria e sobrinho de Teófilo, que radicalizou. Incitou a multidão contra a filósofa Hipátia, notável matemática e dirigente da escola neoplatônica, acusada de feitiçaria. A multidão linchou-a, cortou seu corpo em várias partes e descarnou-a. Em seguida pôs fogo em seus restos mortais. Mas a Igreja contaria com uma arma mais poderosa para continuar sua luta contra origenistas e arianos, com a teologia que ela atribuiu a Agostinho.

Agostinho nasceu em Tagasta, em 354, no norte da África. Iniciou seus estudos em Cartago, foi professor de filosofia e esteve em Roma e Milão. Filósofo maniqueísta, depois neoplatônico, entrou para a Igreja pelas mãos do bispo Ambrósio, de Milão, o mesmo que mandou Gratianus retirar do Senado a estátua da Vitória, que resultou no seu assassinato. Voltou para a África onde foi bispo de Hipona, a oeste de Cartago, onde morreu em 430.

Sobre um mito, o pecado original, e o sofisma da herança desse pecado por todos os homens, a Igreja construiu um dogma de fé. A salvação do Homem só seria possível pela graça de Deus, conseguida por intermédio da Igreja com o sacramento do batismo. Despojou assim o ser humano não batizado do livre-arbítrio, ou seja, de sua liberdade de escolha para construir seu próprio destino, tornando-o dependente da Igreja para sua salvação, sem a qual estaria condenado ao fogo eterno do inferno.

Nada mais conveniente para os opressores que desqualificar o sujeito sobre o qual ele exerce seu poder. Foi o que fez a Igreja em relação ao Homem, “fruto do mal”, maculado eternamente pelo pecado original de Adão e Eva. Sobre as decisões do Concílio de Nicéia e a teologia atribuída a Agostinho, a Igreja construiu seu império teocrático que vigoraria por toda a Idade Média, e manteria passivo seu rebanho até nossos dias. Mesmo assim, os origenistas e os arianistas continuaram a trabalhar clandestinamente. Sua influência iria gerar outros grupos religiosos e a reação genocida que os francos praticaram contra os cátaros, na região do Languedoc, no sul da França, no Século XIII.an>

Para fazer sua aliança com o Império Romano, a Igreja Católica fez pesadas concessões, que foram além de conceitos teológicos. Ela fechou os olhos aos problemas dos povos colonizados, às desigualdades internas entre os cidadãos romanos e ao escravismo. Em termos comportamentais, ela abandonou a fraternidade, calcada no princípio do amor ao próximo, que deu unidade e credibilidade aos cristãos, transformando-a em obediência cega aos poderes eclesiásticos. Essa aliança deu ao Império uma sobrevida de mais um século e meio, apesar de suas graves contradições, e daria à Igreja o poder por mais mil anos. Mas, ao preço da liberdade humana e do obscurantismo, retardando enormemente o processo ci vilizatório.

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