Pensar o futuro é preciso! X


Com a palavra Darcy Ribeiro

Arnaldo Mourthé

Ao chegarem ao Novo Mundo os europeus encontraram civilizações com níveis diferenciados, desde as mexicanas e andinas, às tribos indígenas no Brasil e na América no Norte. Eles não apenas encontraram uma nova terra, mas também suas populações, com culturas próprias, perfeitamente adaptadas às suas condições ambientais. Em alguns aspectos essas civilizações superavam a europeia, nas suas relações humanas e mesmo em conhecimentos. Neste aspecto podemos citar o calendário Maia, mais preciso que o europeu, o Gregoriano, e muito mais sofisticado. Não vem ao caso especularmos sobre essas questões, apenas constatá-las.

A ocupação européia não foi propriamente uma descoberta, salvo para eles próprios, mas uma invasão. E ela foi brutal. Houve extermínio, saques de riquezas e escravidão. Os invasores dispunham de poder militar superior. E fizeram uso deles em diversas oportunidades. No Brasil, a tentativa de escravizar os índios resultou em massacre, dada sua resistência. Em algumas oportunidades houve guerras de extermínio, especialmente com Mem de Sá, governador-geral, de 1558 a 1572, sob aplausos de Manoel da Nóbrega e de Anchieta, que dirigiam os jesuítas, na sua missão de evangelização do gentio.

A escravidão dos africanos, que resultou da resistência dos índios, foi outro massacre. Dos quatro a cinco milhões de negros trazidos da África – quase quatro vezes a população de Portugal no início do século XVI – só foram encontrados 1.510.806 escravos no censo de 1872, mandado fazer por D. Pedro II. Mesmo considerando os alforriados ou fugitivos, que não passavam de algumas dezenas de milhares, nota-se que houve um encolhimento da população. Isto é, ao invés do crescimento natural pela procriação houve uma brutal redução da população, fruto das condições desumanas de sua existência. Desse mal os EUA não escaparam. Apesar de terem forjado uma República na fundação de sua nação, eles admitiam na sua Constituição a escravidão, que vigorou até 1865.

Feitas essas observações, passamos a palavra a Darcy Ribeiro, retiradas de seu livro O povo brasileiro (1995). Nele Darcy analisa pormenorizadamente a formação do Brasil e seu processo civilizatório, cheio de contradições e percalços, mas que conduziu à formação de uma Nação ímpar por sua diversidade étnica e cultural, capaz de superar os problemas mais intricados que as nações tradicionais, amarradas em conceitos restritivos e pertinazes terminam por restringir sua criatividade e sua flexibilidade no tratamento de questões complexas, como a crise mundial que assola a todos. Fala Darcy!

…Nossa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a “povo novo”, num novo modelo de estruturação societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. “Povo novo”, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que  inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros…

…A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente como difusoras e de novas formas e estilos culturais…

…Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais…

…O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os extratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque cristalizam num “modus vivendi” que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo massa, sofrido e perplexo,vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, à vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis…

…Ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma fundamental de construção da história. O que faltou, sempre, foi um espaço para movimentos sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias. Não é impensável que a ordenação social se faça sem convulsão social, por via de um reformismo democrático. Mas é muitíssimo improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da manutenção de umas  velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes dominantes apelam para a repressão e a força…

…Nós brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na “ninguendade”. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e negro…

…É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Fala uma mesma língua, sem dialetos. Não abrigam nenhum contingente reivindicativo de autonomia, nem se apegam a nenhum passado. Estamos abertos é para o futuro.

Nações há no Novo Mundo – Estados Unidos, Canadá, Austrália – que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viver com mais folga e liberdade, sentido-se em casa. É certo que às vezes se fazem criativos, reinventando a república e a eleição grega. Raramente. São, a rigor, o oposto de nós

Nosso destino é nos uniformizarmos com todos os latino-americanos por nossa oposição comum ao mesmo antagonista, que é a América anglo-saxônica, para fundarmos, tal como ocorre na comunidade europeia, a Nação Latino-Americana sonhada por Bolívar. Hoje, somos 500 milhões, amanhã seremos 1 bilhão. Vale dizer, um contingente humano com magnitude suficiente para encarnas a latinidade em face dos blocos chineses, eslavos, árabes e neobritânicos na humanidade futura.

Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também mais bela e desafiante…

Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se  fazer uma potência econômica, de progresso auto-sustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais gernerosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.

Darcy Ribeiro nos deixou informações e inspiração para continuarmos a grande batalha do Brasil. A de ser o berço de uma nova civilização, mais humana, mais alegre e mais criativa. Seus ensinamentos são um ponto de partida, uma cabeça de ponte em linguagem militar, para nós procurarmos e encontrarmos nossos caminhos para realizar essa nova civilização que a Humanidade necessita. É uma grande e gloriosa missão, que certamente levaremos a cabo. Não serão as castas, internas e externas, que nos impedirão. Somos muito mais poderosos que eles. Somos milhões de seres que se respeitam, desprovidos de egoísmos mesquinhos. Tudo só depende de nossa vontade e de nosso empenho, na defesa de nossos direitos de seres humanos.

Rio de Janeiro, 29/6/2017.

 

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