Os novos barões do café (XVII) – O golpe militar


O golpe militar

Arnaldo Mourthé

            No seu discurso do dia 13 de março, Jango fala de coração aberto. Ele sabia das suas dificuldades para manter-se no poder. Por isso deixou sua mensagem para a história. Ela servirá de lição para as futuras gerações de brasileiros, responsáveis pela defesa do legado de nosso povo, da sua luta, das suas glórias e desilusões, e dos seus sacrifícios e exemplos de honestidade e coragem. Depois das saudações de praxe, Jango ataca a semântica ideológica do patriciado e dos entreguistas.

A democracia, trabalhadores, que eles desejam impingir-nos, é a democracia de antipovo, da antirreforma, do antissindicato, aquela que favorece os interesses dos grupos que representam. A democracia que eles pretendem é a dos privilégios, da intolerância, do ódio, para liquidar com a Petrobrás. A democracia dos monopólios nacionais e internacionais, a democracia que levou Getúlio Vargas ao extremo sacrifício (43).

Em seguida defende a reforma agrária:

[…] Reforma Agrária, que será o complemento da abolição do cativeiro de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em condições miseráveis. […] O povo tem que sentir a democracia que ponha fim aos privilégios de uma minoria proprietária de terras. Quer participar da vida política do país através do voto, poder votar e ser votado. É preciso que nos pleitos eleitorais sejam representadas todas as correntes políticas sem discriminação ideológica. Todos têm o direito à liberdade de opinião e a manifestar o seu pensamento. Este é um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na própria carta das Nações Unidas.

O tema seguinte é sua visão cristã da política:

Da minha parte, à frente do Executivo, tudo farei para que o processo democrático siga o caminho pacífico para derrubar os obstáculos que impedem a liberdade do povo brasileiro. Juntos, governo e povo, operários, camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, seguiremos a caminhada da emancipação econômica e social do País. O nosso lema, trabalhadores, é progresso com justiça e desenvolvimento com igualdade.

Mais adiante ele trata das reformas de base.

Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformas. Que não é possível acomodar-se e admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional. Para milhares de brasileiros, o caminho das reformas é o do progresso e da paz social. Reforma, trabalhadores, é solucionar pacificamente contradições de uma ordem jurídica superada pela realidade em que vivemos.

Acabei de assinar o Decreto da Supra. Assinei, meus patrícios, com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior da Pátria. É necessário que se diga que não é ainda a Reforma Agrária pela qual lutamos […]

O decreto considera de interesse social, para efeito de desapropriação, as terras que ladeiam os eixos rodoviários, os açudes públicos federais e terras que podem tornar produtivas áreas inexploradas, ainda submetidas a um comércio intolerável e odioso. Não é justo, trabalhador brasileiro, que o benefício de uma estrada construída com dinheiro do povo venha a beneficiar apenas as minorias privilegiadas do País.

[…]

Mas, trabalhadores, Reforma Agrária com pagamento prévio em dinheiro não é Reforma Agrária; como consagra a Constituição, é negócio agrário que interessa apenas ao latifundiário. Sem reforma constitucional não poderá haver Reforma Agrária autêntica, que atenda aos reclamos do povo brasileiro.

Para tornar mais claro seu pensamento sobre essa questão, ele cita exemplos de outros países.

Em todos os países civilizados foi suprimido da Constituição o pagamento prévio em dinheiro. No Japão, há mais de 20 anos que já se fez a Reforma Agrária, pagando-se em títulos com prazos de 20 anos e juros de 2%. Quem promoveu a Reforma Agrária não podia ser chamado de comunista. Foi o General MacArthur, general americano, que não podia ser acusado de estar a serviço de interesses internacionais. Na Itália, na Calábria, há mais de 15 anos que a reforma foi realizada. A produção multiplicou-se e os camponeses passaram a ter seus pedaços de terra própria.

O México há doze anos vem concretizando a sua Reforma Agrária, empregando mais de 30 milhões de hectares de terra trabalhada, entregando-a aos camponeses mexicanos, realizando pagamentos de 25 anos, com juros nunca superiores a cinco por cento. Na própria Índia já se fez a Reforma Agrária de mais de metade da área cultivável daquele país. Não existe argumento capaz de afirmar que no Brasil, uma Nação jovem e que se projeta para o futuro, o povo não possa fazer a reforma constitucional que lhe permita uma Reforma Agrária autêntica.

E justifica a necessidade de aumentar a renda dos trabalhadores do campo.

Nas fábricas e indústrias há tecidos e sapatos sobrando. Enquanto isso, o povo brasileiro vive nu no interior da Pátria. Suas crianças sem calçado, porque não têm poder aquisitivo para comprar esses produtos.

Jango encerrou seu discurso com as seguintes palavras:

Hoje, com o alto testemunho da Nação reunida na praça que ao povo pertence, o Governo, que é também do povo e ao povo pertence, reafirma seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pelas reformas tributária, eleitoral, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e, ao lado do povo, pelo Progresso do Brasil. (43)

Jango era assim como se mostrou no comício do dia 13 de março de 1964. Em nenhuma parte de seu discurso, ou do seu programa de reformas, encontramos quaisquer manifestações contra a ordem, a justiça, a democracia, ou as instituições. Ele era um homem aberto, sem mágoas ou rancores, amigos dos amigos e justo para com todos. Era um estancieiro. Criava gado e plantava suas terras. Bom administrador, que cuidou das fazendas de Getúlio enquanto foi preciso. Pai zeloso e amoroso, e homem caseiro, apesar de político militante, e sempre presente nas suas obrigações. Não tem nada nele que possa identificá-lo como vilão.

Seria comunista? Não era. Mas se fosse, seria crime ser comunista? Seria crime pensar a favor do operário, ou querer uma sociedade onde o lucro não seja o maior dos princípios morais? Nem pecado seria, porque os ensinamentos de Cristo são de tolerância e de amor ao próximo. Seriam então vilões os sindicalistas que defendiam os trabalhadores? Jango era nacionalista, pois defendia os interesses do Brasil. Seria o nacionalista um vilão? Francamente não dá para encontrar na nossa investigação qualquer fato ou comportamento que pudesse justificar a queda de João Goulart da Presidência. Muito menos por um golpe de Estado, essa excrescência que enodoa a história da nação e envergonha a todos.

Eu conheci Jango pessoalmente. Quando ele era vice-presidente, no governo JK, seu gabinete era no prédio do Ministério do Trabalho, no Rio de Janeiro. No final das tardes, ele recebia ali seus amigos, correligionários, intelectuais, sindicalistas e estudantes. Eu participei, quando estava na UNE em 1959/60, de alguns bate-papos informais ali. Jango era um homem aberto ao diálogo. Tinha suas opiniões, mas não as impunha a ninguém. Era um cavalheiro, tolerante e cortês. Muito tempo depois, eu e meu irmão Dirceu, encontramo-nos com Jango em sua fazenda no Uruguai, em Taquarembó. Nós acabávamos de sair do Brasil, fugidos da perseguição da ditadura, e tínhamos uma mensagem para ele, enviada por José Gomes Talarico, seu grande amigo. Na sua intimidade, longe do poder, com semblante triste, mas convencido de estar cumprindo com seu dever, ele nos brindou com uma longa conversa. Falamos das desventuras dos companheiros, mas principalmente sobre a política no Brasil e no mundo, e as perspectivas de superar tudo aquilo, que não eram nada boas. Mais tarde voltamos a encontrá-lo. Sempre o mesmo homem afável, prestativo, senhor de si, mas sem qualquer sombra de soberba.

Para os leitores que se interessam por essa questão, recomendo o livro da jornalista Teresa Cesário Alvim O golpe de 64: a imprensa disse não (17). Nele estão presentes nomes consagrados, como Antônio Callado, Barbosa Lima Sobrinho, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Edmundo Moniz, Otto Lara Rezende, Alceu Amoroso Lima, Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), Moacir Werneck de Castro, Joel Silveira, e outros. A revista Carta n° 11, de Darcy Ribeiro, contém extratos desse livro. Para os leitores interessados vale a pena conhecer esses depoimentos feitos no calor dos acontecimentos.

Descontados os arautos do anticomunismo e da “democracia” sem povo, a que se referia João Goulart, as cabeças pensantes do Brasil não encontraram razão palpável para o golpe de Estado de 1964, que não fosse a defesa de privilégios do patriciado nacional, ou dos interesses do capital estrangeiro. Se analisarmos o golpe no cenário internacional, ele se torna mais transparente, já que foi planejado e desfechado como parte da estratégia do capitalismo internacional, objetivando o controle dos mercados e o bloqueio ao avanço do socialismo pelo mundo. Mas como, e por que, essa operação fantástica no conjunto dos países? É disso que trataremos no capítulo que se segue.

Rio de Janeiro, 20/12/2016.

 

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